É como sair para caminhar por uma cidade que você não conhece, com belezas surpreendentes e novos encantos a cada audição. Ainda que ancorado em referências e certas práticas do velho e eterno tropicalismo, o álbum de estreia do grupo recifense Marsa passa longe dos clichês de fusão do regionalismo com o pop para retrabalhar cacos e ecos de Brasil profundo em ritmo, poesia, harmonia e melodia.
Diferentemente de vários de seus contemporâneos, os integrantes do quinteto não padecem de “vintagismo” e não tentam soar como se estivessem em algum lugar do milênio passado. Mesmo que os píncaros da produção brasileira nessa mestiçagem, seja Novos Baianos, Secos & Molhados, Clube da Esquina ou mesmo Mutantes, apareçam aqui e ali como referência, as fusões seguem cursos desconcertantes, sempre com um desvio de rota buscando a originalidade.
Thiago Martins (voz e guitarra), os irmãos Rogério Samico (voz, baixo e sintetizador) e Rodrigo Samico (guitarra), Carlos Amarelo (bateria) e Rodrigo Félix (percussão) lançaram Circular Movimento em 2016. O disco, com produção assinada pelos irmãos Samico, foi resultado do prêmio no Festival Pré-Amp, que garantia ao vencedor recursos para gravação, mixagem e prensagem de mil cópias. Apesar de apontado por alguns sites como um dos melhores lançamentos do ano passado, o álbum escapou do radar de portais e veículos importantes no Sudeste e em outras regiões. Mas uma nova vitória, em outro concurso, realizado pelo selo Mills Records, do Rio de Janeiro, dá nova chance ao país de conhecer o trabalho, seja através das plataformas digitais ou do formato físico, que ganha nova tiragem.
Formado por músicos experientes alguns deles, colegas de geração do Mombojó, e dois, Thiago Martins e Rodrigo Samico, que já haviam colaborado em outros projetos, como o Sagaranna -, na faixa dos 30 anos, o Marsa parece ser um caso de ótima química instantânea. Mas, como eles mesmos apontam, essa química é estimulada na busca consciente por caminhos diferentes para as composições, quase todas surgidas em rodas de violão ou trazidas para o coletivo ainda em formato acústico. Assim, forrós, sambas, baiões, choros, serestas e outros gêneros ganham bem-vindos traços impuros.
A faixa-título do disco, “Circular Movimento”, moldada logo na primeira reunião em estúdio, dá a medida do potencial criativo do grupo. Depois da introdução, com o belo chamamento de Thiago, “Ode Ifá, Egum! Orunmilá”, o groove hipnótico se estabelece e o afrobeat reconstruído pela bateria de Amarelo e a percussão de Rodrigo Félix sequestra ouvidos e músculos de forma natural. Nada recendendo ao “afrobeat universitário” de tom postiço praticado por tantos jovens grupos brasileiros. Em participação especial, o trombonista Moab Nascimento brilha no recorte conciso, de canção, outra bem-vinda diferença em relação a outros exercícios do gênero.
Mas a porta de entrada ideal para o trabalho é mesmo a faixa de abertura, “Sobre a paixão”, inclassificável e tomada pela poesia e pela graça dos vocais de Thiago. “No fígado o vinagre, o álcool, o agre e o fel/ no pulmão o vício/ no encontro o jogo/ no afago o fogo/ e a paixão é isso”, define ele, deixando claro que o Marsa tem em seu cantor belo diferencial na viagem entre rock, reggae, folk de viola de 12 cordas e uma lisergia que remete ao Ave Sangria, pilar do psicodelismo pernambucano dos anos 1970.
“Vermelhos”, a faixa mais tocada do grupo em serviços de streaming, se fia na delicadeza e no charmoso sotaque de Thiago Martins. Tem frescor naîf de samba novobaiano, com saborosa batucada e novas intervenções bem colocadas do trombone de Moab.
Introduzida por um belo texto de Gleison Nascimento (o poeta que atua como um sexto elemento do grupo) sobre um navio negreiro, “De mim, de nós, do nada”, originariamente um baião, ganha manemolência reggae e desdobramento progressivo, com belo coro refinado pela participação da cantora Marina Silva.
A épica “Serpente”, que tem ao contrabaixo o amigo da banda Felipe S., do Mombojó, é outra peça rara inclassificável, veículo para Thiago brilhar como intérprete. Na abolerada “Tarcísio”, com um chamegado quase paraense, ele explora, dengoso, o lado homoerótico da composição, feita especialmente para a trilha de um curta, “Crua”, de Benedito Serafim, de contornos trágicos.
A poética afiada de “A Pele”, parceria de Gleison e Rodrigo Samico, rasga a melodia ibérica, com twists imprevisíveis, para se aquietar em seguida na belíssima “Mais um só”, inspirada – sem obviedades – em Secos & Molhados. “Tristeza é o mal do peito/ Veja como estou tão só/ Mas sou mais um só/ Vivo num final de tarde/ Mas sem fazer alarde/ E sem pensar no fim”, tenta dizer a valsa, ecoando clássicos prog no extasiante solo de sintetizador MicroKorg ao final.
Em outras ondas, o Marsa avança para a sequência final do disco com um reggae desossado de alto lirismo, “Breu da dor” (parceria de Thiago com Gleison e Rodrigo Samico), e “Água Viva” (de Rogério Samico e de Barro, uma das recentes revelações da música de Pernambuco), outra canção inclassificável, que parte do pseudoafoxé para uma pisada mais funky contagiante. Na saideira, “Seda Manhã”, com dois tons e dois compassos ao mesmo tempo, nina os ouvintes já convidando para um “play again”. Um álbum que cresce a cada audição, uma banda que vai crescer muito.
Pedro Só.